quinta-feira, 31 de maio de 2007

4º Dia: Dos tempos de cólera (II)

Desde esse dia, caí de cama enfermo. Entre febres e delírios, passei semanas doente, sem sequer conseguir me levantar. Doíam os ossos, os músculos, os olhos, o corpo inteiro. A fraqueza tomou conta de mim, como se um olho-grande tivesse me jogado um quebranto.

Dormia o dia inteiro e, sempre quando acordava, me deparava com o rosto de Vesúvia, velando-me o corpo, passando a mão na minha testa para sentir-me a febre. Era uma feição preocupada, como se estivesse pressentindo a minha partida. Suas pálpebras arqueadas, o nariz adunco, as rugas ao redor dos olhos castanhos vivos: era tudo o que eu conseguia ver naquele quarto escuro.

Sempre quando acordava dos delírios, duas ou três vezes ao dia, meu olhos percorriam detidamente o recinto, em busca de Ceci. Mas eu jamais a viria, logo eu lembrava. Ela era invisível. Esperava, então, sentir um vento fresco rodopiando o meu corpo, um sinal de sua presença. Mas não. Apenas via Vesúvia. Os olhos iam perdendo força e a escuridão retomava a minha mente.

Nos meus sonhos, percorria as belas paisagens das narrativas que sempre li e interagia com as personagens. Em todos os sonhos, aparecia, ao fundo, uma cadeira de balanço onde estava sentado um velho. Eu tentava me aproximar, caminhar até a cadeira, mas algo sempre me prendia. De sonho em sonho, fui chegando mais perto, e via que o velho sorria, gargalhava, e me piscava o olho. Aproximei-me mais um pouco e não tive dúvidas: era o Deus coronel de engenho:

- Vem até mim!

Por mais que eu tentasse, não conseguia alcançá-lo. Quanto mais eu andava, mais ele parecia distante, sempre rindo e gargalhando:

- Estou à tua espera.

- Eu não consigo chegar até onde tu estás!

Mas ele não respondia, apenas ria.

Olhei para os lados e percebi que estava no meio da caatinga, no mundo dos homens. Um calafrio percorreu todo o meu corpo quando tive essa constatação. Jamais sonhara com o mundo dos homens. Não queria estar no mundo dos homens, queria estar no meu mundo, criado por mim mesmo, controlado pela minha mente.

Ao meu redor, homens magros e doentes se arrastavam pelo chão, arquenjantes, disputando pedaços de pão que, naquele momento, o Deus coronel de engenho jogava, ao longe, um por um. A cada pedaço que jogava, parava e dava algumas gargalhadas.

Alguns homens estavam bastante feridos, o corpo repleto de caroços por onde saíam sangue e secreções. Havia cactos gigantes, que expeliam espinhos e como flechas atingiam os homens, que gritavam medrosos. Não falavam palavras, mas apenas gritavam. Gritos fortes e agudos, que cada vez se tornavam mais altos e dissonantes, fazendo-me doer o ouvido. Ossos estavam espalhados pelo chão e, quando olhei mais detidamente para alguns homens, percebi que alguns deles já não se mexiam. O cheiro que passei subitamente a sentir quando me aproximei de um deles não me deixou dúvidas: já estavam mortos.

Não bastasse essa constatação, urubus vieram da direção onde estava Deus e passaram a disputar as carniças humanas. Esquartejavam os corpos e despedaçavam os homens, assustando os que ainda pelejavam viver.

Deus passou a jogar água nos homens. Alguns tentavam levantar o pescoço e abrir a boca, na esperança de que pelo menos uma gota lhe refrescasse a garganta sedenta por algum líquido. Porém, a água atingia as feridas abertas dos seus corpos, e mais eles gritavam pela dor, como se tivessem levado chibatadas.

Foram morrendo todos, um por um. Os urubus passaram a não respeitar nem os quase-mortos, comendo-os, arracando-lhe pedaços, tomando-lhes o último fio de vida que persistia. Deus gargalhava, agora sentado na cadeira de balanço. Quando apenas restavam restos de corpos despaçados pelo chão, em meio a ossos e muito, muito sangue, o sol se punha, escondendo-se entre as montanhas ao fim do horizonte. O céu limpo, totalmente avermelhado, testemunhava e acolhia a cena sanguinária. Os urubus se dispersaram e a cena foi sendo desmontada na mesma velocidade em que fora concertada. A escuridão foi tomando conta do cenário e apenas continuei a ouvir a gargalhada de Deus e a revoada dos urubus, ao fundo.

O mundo dos homens era um inferno.
[continua...]

3º Dia: Dos tempos de cólera (I)

O lugar onde tenho a mais forte sensação de liberdade é o quartinho alugado onde moro. Voltar para casa depois de um dia de intenso trabalho e me trancafiar sozinho no meu próprio mundo traduzem uma sensação de paz e contentamento interno tão grande, que a vontade que tenho é de jamais sair ao mundo dos homens.

Todos os dias, subo na minha cama, fecho os olhos e abro os braços o máximo que posso. A ponta do maior dedo da minha mão esquerda toca uma das paredes, e a ponta do maior dedo da mão direita toca a parede oposta. Sinto-me como se estivesse abarcando o meu mundo com os braços; sinto-me superior e independente de tudo; sinto-me altivo, longe dos homens; sinto-me livre.

A minha maior liberdade é sentida num minúsculo cubículo fétido e úmido de um cortiço na zona baixa da cidade. Às vezes, nem eu me entendo...

Ao lado da minha velha e aconchegante cama de madeira, que ocupa quase todo o espaço do recinto, fica uma cômoda de quatro gavetas onde guardo roupas, livros, pertences e, em especial, uma caixinha de papelão, de cor vermelha, em formato de coração, onde ficam um peão, duas fotografias e este diário que escrevo. O peão é um brinquedo que guardo desde criança, como uma nostálgica lembrança do meu passado; uma das fotografias é de minha mãe, que não pude conhecer; a outra fotografia é de Vesúvia.

Desde que eu me entendi no mundo, quando ainda era pequeno, eu morava com Vesúvia. Era uma mulher alta, forte, cabelos bem negros malcuidados e divididos em duas tranças bem longas, os fiapos brancos já aparecendo, o rosto cansado, tostado e enrugado pelo sol e pelo próprio tempo. Vesúvia apenas vestia preto, e sempre no pescoço deixava dependurado um longo e pesado terço de madeira.

- Eu não sou tua mãe, não, Pingolim – sempre lembrava.

O único aspecto de seu passado que eu sabia era a sua nacionalidade portuguesa e o seu estado de viuvez. Vesúvia viera de Portugal ainda jovem, recém-casada. Seu marido, julgando-se visionário, cismara que um melhor futuro encontrariam no Brasil. Vieram para cá somente com as suas respectivas caras e coragens, sem grandes planos ou recomendações. Perambularam por muitos lugares e finalmente chegaram ao sertão, o destino dos sem-destino, para onde se vai quando tudo o mais não dá certo.

Mas Vesúvia subitamente enviuvou. E só sei de sua história até esse ponto. Os detalhes restantes todos comentavam por cochichos, mas nada chegou aos meus ouvidos.
- Teu nome não é Pingolim, mas te chamo assim porque quero.

Vesúvia me dava medo.

Pela manhã, vinham todas as crianças da freguesia para as aulas da mestra Vesúvia, que ensinava as letras do alfabeto, as orações, os cânticos de Jesus e os ensinamentos morais. Eu não podia assistir às aulas com as outras crianças, tendo que ficar sozinho no porão, lendo os livros que ela me passava.

- Não te mistures aos homens, Pingolim.

Pela tarde, enquanto todas as crianças brincavam na rua, Vesúvia vinha tomar a lição comigo. Fazia perguntas sobre tudo o que eu havia lido na manhã, olhando sempre mais forte para a palmatória quando eu estava na iminência de titubear alguma resposta. Após a lição, eu sempre era obrigado a comer um mingau de aveia, quente e salgado. E apenas se eu comesse tudo poderia brincar de desenhar, com os lápis coloridos e as tintas, enquanto ela, frente ao altar que havia na sala, rezava três vezes o mesmo terço, em latim.

- O mundo dos homens lá fora é perigoso, Pingolim – alertava Vesúvia.

E fui crescendo sozinho, mergulhado nas minhas leituras, nos meus desenhos e no mundo criado por mim mesmo. Um mundo parecido com o que eu lia nos livros, cheio de personagens, bonitas paisagens bucólicas e serranas, histórias maniqueístas de reis e de nobres, de príncipes e de mocinhas. Tudo muito diferente do mundo dos homens, entocado no meio do sertão, do calor e da seca, onde pessoas morriam de fome e de sede, onde as árvores não cresciam e tudo já nascia condenado ao fracasso. A minha maior alegria era quando vinha o caxeiro viajante e trazia livros novos, alguns que nem eram da mesma língua que a gente fala, não obstante eu tentasse decifrar o que aquelas letras embaralhadas significavam:

- Isso é francês, Pingolim. Quando tu cresceres, eu te ensino.

- Mas quando eu vou crescer?

- Tu és intanguido assim de ruindade – sentenciava.

Todas as noites, desde criança, escutava vozes estranhas, de pessoas que eu não conhecia nem via, e que falavam coisas que eu não conseguia entender. Por vezes, elas se multiplicavam, entoando uma profusão de vozes que faziam meus pensamentos embaralharem. Eu tentava fechar os olhos e dormir, mas o que via era um jogo de cenas que se sucediam na minha mente, cada vez mais rápido, até o ponto em que eu me revirava irrelutante para os lados e gritava:

- Vesuuuu, és tu quem fala comigo?

- É o vento, Pingolim, que rodopia por entre as árvores e confunde os teus ouvidos.

Com o passar do tempo, as vozes foram se tornando mais nítidas e escassas, até o ponto em que ouvia apenas uma voz doce e feminina. Era uma sensação estranha, pois era como se a voz viesse de dentro de mim e conversasse comigo, lenta e pausadamente. Inicialmente, a descoberta dessas sensações me causou medo, que aos poucos se pacificou e só assim pude me acostumar com a minha interlocutora: era a Ceci.

Ceci se tornou a minha amiga de todas as horas, a companheira nas leituras, a crítica dos meus desenhos, a sopradeira na hora de tomar as lições e de esfriar o mingau quente de aveia. Ceci era como eu, perdia-se nos livros e nas leituras. Possuía uma imaginação tão fértil, que às vezes eu me espantava com a sua inteligência. Provavelmente não teria vindo do mundo dos homens, logo eu imaginara.

- Tu não precisas me ver para gostares de mim, Pingolim. Só é preciso que eu conheça o teu coração e que tu conheças o meu – cochichava Ceci no meu ouvido.

Eu já tinha uns quinze anos quando o sertão foi abatido por uma seca braba, mais forte que a dos anos anteriores. Eu nunca havia visto algo naquela intensidade. As árvores foram amarelando, as vaquinhas foram emagrecendo e o rio Pituba foi minguando até passar apenas um fiapo de água, que não dava nem pra encher as cuias.

Vesúvia corria desesperada todos os dias para ver os bichinhos que emagreciam, os capotes que morriam de sede e a corrente de rio que minguava. Ela punha sempre as duas mãos na cabeça, aflita, olhava para os céus e gritava:

- Maldito aquele que me trouxe para esse inferno!

Eu espiava Vesúvia pela fresta da janela, mas logo voltava aos meus livros, com receio de ser surpreendido, e lá sempre me esperava Ceci, como um sopro de vento que rodopiava e me envolvia.

No entanto, a seca foi piorando e logo vieram rumores de que, no mundo dos homens, muitas pessoas estavam morrendo doentes e fracas.

- O que será de nós, Vesu?

- Deus proverá, Pingolim. Deus proverá. – repetia ela, como um mantra, com um ar misto de esperança e ceticismo, contando pelas janela quantas animais ainda restavam no curral e quantas cuias de água ainda restavam cheias.

Naquele dia, quando eu fiz minha arte no papel, desenhei um senhor velho, barbudo, sentado confortavelmente numa cadeira de balanço de madeira rústica, trajando uma roupa bonita, farta, um casaco de pano bom, anéis de ouro nos dedos e colares no pescoço. Fumava um cachimbo que expelia uma longa fumaça cinza. O seu rosto tinha uma feição tão estranha, que nem eu mesmo consegui decifrar se era contentamento, ironia ou indiferença.

- Que é isso, Pingulim? Um coronel de engenho?

- É não Vesu... – baixei a cabeça, um pouco envergonhado – é Deus.

- Deus?

A feição de Vesúvia mudou completamente, como se tivesse levado um susto ou não acreditasse no que eu havia dito. Os seus olhos me fitaram longamente, denotando raiva e repreensão:

- Você não entende nada de Deus! – sentenciou e saiu ao altar, fazendo incontáveis vezes o sinal da cruz e apertando fortemente o terço que carregava no pescoço.

Nesse mesmo momento, passava um cortejo pela rua. Corri para a janela e espiei. Era mais um velório. Morrera mais um homem, de fome, de sede e de fraqueza. Os homens na procissão entoavam cantos da Igreja, numa únívoca e fraca voz, lenta e arrastada, como se estivessem a caminho do próprio calvário. As velhas carpideiras seguiam chorosas, cumprindo o seu papel, no início do cortejo, anunciando a morte, a velha companheira e amiga de todos ali. O corpo do falecido ia numa rede, carregada por dois velhos de roupas rasgadas, trôpegos e arquejantes. Uma senhora caminhava ao lado, carregando num andor a imagem de um santo.

Com exceção das velhas carpideiras, que choram por profissão, nenhuma pessoa chorava no cortejo, nem mesmo os parentes do falecido. A morte se tornara tão comum e previsível naquele sertão, que, para alguns, já era considerada um alívio.

Mas que Deus é esse que nos submetia a um calvário? Que Deus mais parecido com um coronel de engenho, que, igualmente a um capataz, faz os homens sofrerem, matando-os de fome, de sede e de cansaço, de lapadas e balas, e que depois senta confortável na sua cadeira e fuma o seu cachimbo?

- Isso é castigo! Oh, castigo! – resmungava Vesúvia, como se ouvisse o meu solilóquio.

Que Deus é esse que castiga, que faz sofrer? Deus não é amor e perdão? Que Deus é esse a quem todos esperam, calados e resignados? Quem é? Quem é? Que Deus é esse a quem todos invocam, esperançosos e céticos? Que Deus é esse em quem todos os homens depositam os seus anseios e os seus desejos, mas que parece negligenciar os gritos de dor?

E essas imagens de barro, que afirmam serem santas, o que são? Que homens foram esses que se tornaram tão amados e tão especiais? Será que viveram no mundo dos homens ou viveram nos seus próprios mundos?

Que Deus é esse que se vinga, que olha feio, que não manda chuva a quem precisa? É um Deus que ama e que odeia, vê desastres e continua indiferente, escuta clamores e tampa os ouvidos, sente a dor alheia e não tem piedade. É um Deus que julga os homens na cadeira dos réus, colocando pesos e contrapesos na sua balança imaginária, ponderando e calculando rigidamente os desvios da sua arbitrária lei, alcançando, enfim, um julgamento aclamado pelos homens, culminado pela aplicação de um castigo e nomeado pela indecifrável palavra Justiça.

Enfim, é um Deus tão humano e imprevisível quanto todos os outros homens, chegando eu a desconfiar de que ele seria um homem, tão imaginário e ordinário quanto qualquer outro exemplar dessa espécie.

- Deus proverá... Deus há de prover... Há, sim! Ora se não há! É o nosso pai, nosso criador! – resmungava Vesúvia, já não mais o invocando solenemente, mas lhe exigindo desesperadamente uma atitude imediata.

- O pai de Deus é o homem, Vesu.

Ela percorreu a sala lentamente, fitando mais uma vez o meu desenho de Deus coronel de engenho que estava sobre a mesa. Franziu a testa e afirmou, impiedosamente, o dedo em riste:

- Tu não entendes mesmo nada de Deus, Pingolim. Nada! Nada! nada! Tantas lições que eu já te dei e não aprendeste nada. Tu és um ingrato. Vais ser castigado!

- Castigado por Deus ou pelos homens?

Vesúvia me encarou longa e firmemente, o olhar vermelho, preparando-se para dizer mais uma intempérie. Desistiu. Pegou o papel com o meu desenho e o amassou lentamente, como se tivesse prazer em fazer aquilo.

Eu não aguentei aquele olhar vermelho tão fortemente lançado sobre mim e corri subtamente para os meus livros, à procura de Ceci. Mas ela lá não estava. Gritei baixinho pelo seu nome. Ceci! Ceci! Ceci! Onde está você? Mas apenas obtive como resposta o silêncio. Um silêncio de ansiedade, receoso, ensurdecedor, que arrepia os pelos e faz doer o estômago. Corri pela casa esperando Ceci se manifestar, dentro ou fora de mim. Pecorri os longos corredores do sobrado onde vivíamos, revistei os quartos, a parte de baixo das camas, a traseira das estantes e tudo quanto pude alcançar. Mas não conseguia ouvir a sua voz nem sentir a sua presença. Encostado numa parede, deixei-me escorregar e caí no chão, ardendo em febre, choroso e especulando que a Ceci talvez morrera de fraqueza, levada pela seca.

- O Deus é apenas mais um homem ingrato – eu resmungava baixinho.
[continua...]

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Alto Relevo de Resignação



Representação. Reconheci essa palavra hoje. Acolho-me da humildade para dizer que não a compreendi, mas o silêncio por dentro de máscaras nunca me foi tão fielmente remontado. Não penso antes de escrever. Aliás, não penso antes de agir, de sentir. Defino depois. Crio sentidos depois. Sempre somos mais introspectivos após a segurança do ato constituído. É, dura constatação. Hoje li frases familiares, ao mesmo tempo desconhecidas. Não sei se as escrevi há algum tempo. Não sei se nunca as tinha visto antes. O que importa? Talvez as escrevi e nunca as vi ao mesmo tempo. É difícil remontar, reconstituir. Por isso, representar. Redefinir, na imaginação, o que está ao alcance de meus sentidos forjadores da realidade.

Reconheço o limite dentro desse escopo calado. Mereço melhor explicação, empreendo significados intrusos. Perdão. Retiro minha colocação. Estou no limite de meu pensamento. Às vezes me confundo com minha própria imagem. Como meu amigo, João Paulo, percebo minha condição de moeda: sou jogado no mundo para me virar. Condição humana, condição repelida pelos bastidores naturais. Como empenhar-se em definir o que não me é plausível? Ando, ando e ando. Conheço lugares. Reconheço lugares. Depois leio sobre os mesmos, em livros de minha autoria, sem lembrança alguma das ruas, dos monumentos e de minhas memórias inscritas em seus arredores. Estou à beira da loucura.

Retruco essa afirmação. Estou mais lúcido do que nunca. Louco são meus parceiros de conversa. Outro dia, buscando meus óculos escuros, notei minha mão esquerda tremendo. Busquei a vela em cima do móvel, ao lado de minha cama. Nunca sei o nome desses objetos. Pulo todas as linhas dos livros que tentam me explicar essas denominações inúteis. Mas enfim, a segurei para decifrar meu problema. Estou tremendo porque posso? Ou estou tremendo por incapacidade física de manter minha mão estável?

Retorno. Volto à vela. Minha mão entoava sua superfície lisa enquanto o fogo, como se lutasse contra seu maior inimigo, se exaltava por toda a parte. Vi-me perdido naquele momento. O fogo, que não possuía um grão de vida a mais que eu, respondia aos traçados do mundo de forma muito mais vivaz. A cera derrete. Traz a sensação aos meus dedos. Estão enxaguados pelo véu entusiástico da resignação. Talvez por saber que estava com seus dias contados, a combustão se encantava com minha dor e eu, por respeito à sua breve morte, permanecia entregue ao ardente edredom branco que envolvia minhas extremidades.

Repouso. Foi aí que percebi. A força de vontade, a escolha, se assim melhor lhe incumbir, nada me serve. Especialmente quando estou deslumbrado com um acontecimento único, resplandecente, encantador. Minha mão tremia, e nada percebi até o fogo se apagar. Minha pele, antes enrugada somente nas dobras dos dedos, preenchia-se de bolhas e riscos vermelhos, todos cobertos pela névoa pacífica da mesma substância que dava vida ao incandescer anterior. Tranqüilidade agonizante. Dizem que após um determinado tempo, nossos nervos são destruídos ao ponto de não sentirmos mais a queimadura. Qual o sentido do mundo se nada sinto? Não me agüento de rir. Como seria proferir uma frase dessas sem poder sentir o quanto é burlesca?

Reprovo essa possibilidade. Adoro sentir. Perfeito, sinto o próprio sentir. Ele é um invólucro de meu ser, de meu estar no mundo. Retirar de mim, ou do mundo, a capacidade de sentir, seria impedir o relativo, impedir o individual. Viver num mundo objetivo, no qual só existe um amor, um jogo de cena e um pôr-do-sol seria uma blasfêmia ao corpo fogoso da vida terrestre. Sinto-me bem por poder queimar, por estar vulnerável diante da cera personificada. Aliás, sou mais vivo que o fogo pela minha capacidade de sofrer. Sofrer nada mais é do que poder sentir felicidade. Não é possível ser sofredor se nunca esteve feliz. O sofredor é, necessariamente, um antigo feliz. Que absurdo. Objetivar o não objetivo. Será possível ser feliz eternamente? Ora, essa pessoa sabe que é feliz, ao ser sempre feliz? Ah, o sofrimento despe o ridículo, e o torna formoso.

Reluto com minhas indagações. Aprendi hoje, representação é reproduzir o que se pensa. Reproduzir é apresentar, novamente, o que, de certa forma, já foi em alguma hora apresentado. Aqui, nesse diário tão meu quanto seu, busco representar minhas montagens do real. Logo, tento apresentar, novamente, o que eu penso, o que eu sinto, como se isso já estivesse sido apresentado, em alguma outra instância, durante algum outro momento. Eu não penso antes de escrever. Não procuro palavras propícias ao fraseamento perfeito. Invento conceitos. Sinto retoques nos mesmos. Mas nunca, nunca, tenho em mente o que está no papel, antes mesmo dele estar ali. Talvez por isso não entendi a palavra. Talvez por isso, hoje, estou feliz. A palavra genérica, a expectativa comum estava aquém da minha maneira de ser. Uma palavra genérica, a todos impostas, que não conseguiu definir minha forma de ser, que não foi capaz de englobar meu comportamento.





quinta-feira, 24 de maio de 2007

1º Dia: As rosas não falam

É durante madrugada, enquanto a cidade dorme, que gosto de andar pelas ruas. Os pés caminham descalços, sempre. Desde criança, nunca gostei de andar calçado. Gostava mesmo era de sentir a firmeza do chão, a dureza da vida. Andava pela caatinga de cima a baixo, pisando nas pedras, nas plantas, nos espinhos, nos bichos. Quando eu ainda nem era adulto, meus pés já não criavam calos. Uma crosta de pele dura havia os envolvido e assim eles permanecem até hoje.

A cidade dorme.

Vou caminhando pelas ruas, calmo, lento. O meu sono não tem pressa. Bate uma brisa fresca no meu rosto. O silêncio da madrugada é interrompido, raramente, por um carro que passa. Vou percorrendo um caminho sem destino, por aqui e por ali, observando o mundo que sinto e designando sentidos para cada lugar que passo. Não gosto de chamar as ruas pelos seus nomes usuais. Arrepia-me a idéia de dizer Rua Epitácio Pessoa ou Avenida das Nações. Não, não, não gosto desses nomes sem sentido e impensados que os homens vão atribuindo aos lugares que passamos. Prefiro chamar a Avenida das Nações de rua da rosa, por causa de uma roseira linda e solitária que um dia achei no meio do capim do meio-fio, ou a Avenida Epitácio Pessoa de rua da minha mãe, por causa de uma senhora que por ali vi há uns anos, no meio da madrugada, trôpega, e jurei que fosse a minha amada (e desconhecida) genitora.

E se hoje chamo uma via de rua da rosa, amanhã posso vir a chamá-la de outro nome, e assim por diante. Basta que algo diferente e mais profundo me sensibilize da próxima vez em que eu passe por ali. A antiga rua do atropelamento hoje chamo de rua das chinesas, e a antiga rua da morte (onde há um cemitério) hoje chamo de rua da vida (onde, na porta do cemitério, uma senhora de cinquenta anos deu luz a gêmeos).

Odeio a idéia da imutabilidade. Posso até fazer as mesmas coisas todos os dias, andar pelos mesmos lugares, cumprimentar as mesmas pessoas, comer as mesmas comidas, mas com certeza penso, em cada momento e em cada repetição, coisas diferentes. Cada vez que passo pela rua do esgoto fedorento ou cada vez que leio o mesmo livro que li semana passada, sinto o novo. Não estou aqui falando do velho carpe diem, traduzido por alguns como viva seus dias de um jeito diferente em todas as horas. Estou falando de algo mais profundo, interior, inegável, talvez fisiológico. Eu penso. Penso. Penso. E não penso as mesmas coisas em todas as horas e muito menos no mesmo segundo. Não decido o que penso nem o que sinto. Eu penso. E não quero hoje ir mais além do que esse verbo. Não quero ficar hoje divagando, como faço às vezes, tentando descobrir os motivos pelos quais os neurônios trabalham ou as pretensas categorias do pensamento (que insistem em afirmar alguns doidos que escrevem sobre isso). Não. Hoje quero apenas estacionar nessa divagação. Eu penso. Obtenho diferentes observações cada vez que olho a mesma roseira solitária que vive na rua da rosa, ou cada vez que sinto o perfume da Ceci, nas tardes da biblioteca. Penso um turbilhão de coisas num mesmo segundo, como uma profusão de constatações advindas de todos os modos com que tenho contato ao que é externo a mim. Eu enxergo, eu sinto odores, eu sinto gosto do que ponho na boca, eu ouço, e eu me arrepio com o que toca o meu corpo. E tudo isso num mesmo instante, sem que eu ordene, decida ou controle, sem que eu tenha ao menos tempo de refletir profundamente sobre quais fenômenos estão acontencendo dentro e fora de mim. Eu vou atribuindo sentidos ao que passa, sentidos que absorvi de outros sentido que os homens criaram, mas que vou tentando mudar aqui e ali, juntando, dividindo ou substituindo, criando a ilusão de que eu crio meus próprios significados e vou me desvencilhando dos homens, mas, ainda assim, tendo a certeza de que, quanto mais acho que me distancio, mais me torno refém do que pensam eles. Os homens...

A cidade dorme.

Num dia em que andava tranquilo pela rua das vacas, vi um pontinho vermelho no meio de uma imensidão de verde. Sem nem ter muita noção do que estava fazendo, corri para entender o que era aquilo. Ia fazendo inúmeras divagações na medida em que me aproximava do ponto vermelho, até constantar, de maneira indubitável, que se tratava de uma roseira. E que linda roseira. Havia uma rosa linda, enorme, e outras duas pequenininhas que estavam na iminência de desabrochar. A partir de então, a rua das vacas passou a se chamar rua das rosas.

Todos os dias eu passava por ali para admirar as rosas que ora morriam, ora nasciam. E cada dia descobria um aspecto diferente daquela planta, desde um sulco mais grosso que trasladava o caule até a grossura dos limbos das folhas da planta. Passava horas a fio sentado ao lado da roseira, observando milimetricamente todas as suas nuances. Voltava inquieto para casa, angustiado para saber o que eu acharia de novo no outro dia. Será que um dia seria capaz de esgotar todas as características da roseira que eu poderia descobrir?

Não, parecia não esgotarem as possibilidades. Cada vez que a olhava, percebia uma coisa que não havia percebido nos dias anteriores. Era como se o acaso me direcionasse inevitavelmente para a observação de um novo aspecto da planta. Preocupado em não incorrer em repetições, passei a anotar, como num diário, as observações novas que, a cada dia, inferia da roseira. Todas as manhãs corria eu à rua da rosa, caderno e lápis em punho, para observar a roseira. A experiência botânica durou meses, até que a seca chegou e nenhum broto novo nasceu, as folhas foram amarelando, o caule foi enrijecendo e, para o meu desespero, numa manhã, quando eu lá cheguei, os coletores de lixo haviam arrancado-a do solo.

Com os olhos cheios de lágrimas, gritei pela roseira, corri pela imensidão verde do mato, o dedo em riste, apontando para o nada, invocando a roseira e injuriando quem quer que a tivesse assassinado. Num impulso de raiva, não hesitei em pegar o caderno, rasgar folha por folha e engolir uma a uma. Os homens me olhavam espantados, surpresos. E eu proclamava para todos os atônitos que ali me observavam que aquela roseira, única e solitária, despretenciosamente, fizera-me um filósofo. Depois daquele dia, evitei passar pela rua da rosa. A rua perdera o seu principal sentido e eu não queria que outro significado tão mais profundo subjugasse a história da rosa. A idéia de passar por ali passou a me dar medo.