quinta-feira, 20 de setembro de 2007

16º Dia: Alegoria do Caldeirão Fervente (VI)

- E chegamos até o ponto a que eu tinha me referido no início, Pingolim. Séculos se passaram, gerações se sucederam e sol e lua continuaram adorados e temidos como deuses. Construiu-se uma religião, celebraram-se mártires e obedeceu-se a homens que nada tiveram de extraordinário, mas apenas que arrogaram para si a função de difundir e de ministrar os costumes e as tradições daquele povo.
- Até que...
- Não obstante épocas de prosperidade terem se sucedido, decerto é que, de tempos em tempos, meses passavam sem que uma gota de água caísse do céu. As plantações sucumbiam, o gado diminuía, pessoas morriam de sede e de fome. Pelo menos os condenados tinham a quem recorrer, em quem depositar as esperanças, a quem rogar. Levantavam uma cuia de barro aos céus e repetiam, como num mantra, os dizeres divinos da velha anciã, corroborando a relação clientelista estabelecida entre aqueles homens e seus pretensos deuses.
“Esses ritos se repetiam todos os dias, incansavelmente. Meses passavam e voltava a cair água do céu, representando um alento de alegria aos condenados. Afinal, não havia, para eles, nada pior do que estar condenado: condenado a viver”.
“No entanto, como havia te falado no início deste relato, numa dessas secas, quando repentinamente caiu uma tempestade na freguesia, após meses sem chuva, adentrou aquelas paragens um forasteiro no lombo de um animal jamais visto por qualquer um daqueles homens, trazendo consigo um baú de madeira”.
“Aquela cena fora terrivelmente surpreendente. Os condenados viviam isolados numa depressão de terras, sem qualquer contato com o que houvesse além dos morros que os cercavam. Sabe-se que, nesse interregno, muitos tentaram fugir. Porém, ninguém jamais voltara à escuridão da caverna platônica onde viviam os condenados para explicar aos demais como era o suposto mundo das idéias, do outro lado das bordas do caldeirão fervente. Inúmeras eram as especulações, as lendas, os mitos, as histórias e as visagens. No entanto, apenas uma afirmação se fizera unânime verdade entre os condenados: partir era não voltar jamais; ficar era aceitar a condenação de viver a esmo.”
“O homem desconhecido, de feições físicas flagrantemente distintas dos seres que viviam na freguesia, tomou a atenção e despertou o medo de todos. Os cabelos longos da cor da terra, meio amarelado, os olhos cor de cacto, a pele branca avermelhada – a mesma cor do céu no crepúsculo –, o corpo espichado e a carne bem dividida formavam um fenótipo jamais visto por aqueles condenados, tão acostumados a verem, entre si mesmos, homens esguios, de peles escuras, de olhos escuros, de cabelos escuros, de vidas escuras. Chegaram alguns a se indagar, no silêncio de seus pensamentos, se aquele ser que se prostrava perante os condenados era, de fato, das suas mesmas estirpe e carne”.
“Mais surpreendente ainda era o animal que o acompanhava, cabalmente distinto das vacas e dos cabritos a que estavam acostumados os condenados: um animal alto, rosto imponente, cabelos lisos e longos, idênticos ao do seu dono, e a pele cabeluda da cor de sujo”.
- Vêem este baú? Vêem este baú – passou a gritar o homem no meio da viela principal da freguesia, atraindo a atenção de todos, não obstante a chuva torrencial – Trago nele coisas que mudarão as suas vidas! Para sempre!
“E os homens se curvaram irremediavelmente diante do novo. Poucos minutos depois, ao redor do desconhecido se prostraram calados todos os condenados, atentos solenemente à abertura do baú.”
“O espanto foi geral quando o forasteiro retirou do baú o primeiro objeto, uma fina camada quadrada e de bandas arredondadas, inacreditavelmente capaz de refletir a imagem daquilo que estivesse à sua frente, tal qual as águas plácidas da margem do rio Pituba:”
- Um espelho! – bradou prazerosamente o forasteiro.
“Tornou ele ao baú e retirou novos objetos, realizando demonstrações de suas utilidades:
- Escovas para os pelos da cabeça!
- Facas para o corte das carnes!
- Vestido para as mulheres!
"Em meio às novas experiências, uma das crianças tentou mexer sozinha no baú, sendo prontamente surpreendida pelo forasteiro:”
- Opa! Não, não! São meus. Por enquanto são meus... Mas... Bem... Podemos fazer negócio!
- Negócio? Que é isso? – questionou um dos condenados, intrigado.
- Troco essas iguarias por ouro!
- Ouro?
- Ouro! Isso daqui! Olha! – pegou de dentro do bolso uma pedrinha amarela e brilhante, tão desconhecida pelos condenados quanto os outros objetos.
- Não temos isso.
- Não tendes isso? E nunca tiverdes a curiosidade de escavar esses paredões? Os homens do outro lado o fazem!
- Homens do outro lado?
- Ué, sim! Do outro lado desses paredões...
- E vivem outros homens perto daqui?
- Nossa! Muitos! Do outro lado desses paredões há Vetusta, a cidade do ouro, onde as paredes das casas são revestidas com essas pedrinhas brilhantes aqui. Naqueles paredões há muitas dessas pedrinhas. E isso vale muito! Tenham ouro e suas vidas mudarão!
- Nunca ouvimos falar. Nunca conseguimos chegar lá.
- Ora! Se falamos a mesma língua, é porque talvez tenhamos o mesmo tronco genético.
- Mesma língua? Como assim?
- Ué, existem pessoas, homem como nós, que falam diferente, utilizando diferentes signos! Está vendo aquele bicho ali? Nós o chamamos de cavalo, mas há quem o chame de “tonto”. Enfim, apenas designamos para as mesmas coisas nomes diversos, mas nem por isso sentidos diferentes. Onde ele for, seja cavalo ou “tonto”, será o mesmo animal.
- Estranho...
- Mas se não tendes ouro, não posso demorar por aqui! – o forasteiro iniciou o recolhimento dos objetos, colocando-os rapidamente no baú – Mas visitais Vetusta, é logo ali! Quem chega lá, jamais quererá voltar!
- Espera! Fica conosco por hoje. A chuva está afinando, e à noite faremos oferendas à deusa lua, em agradecimento. Finalmente nos mandou água do céu.
- Deusa lua? Deusa? Deusa, o feminino de Deus?
- Ué... Lua, a esposa do sol, nosso outro deus.
- Não creio... E Jesus?
- Que Jesus?
- Que deuses estranhos vós professais! Não credes em Jesus aqui?
- Não conhecemos quem é esse.
- Em Vetusta, professa-se um só Deus desde que os homens de língua estranha lá chegaram. Chegaram polvorosos, em guerra! Eu mesmo sou descendente de um deles.
- Guerra?
- Sim! Guerras, lutas, canhões, armas!
- Armas? Canhões? Não conhecemos isso por aqui.
- Estais muito atrasados! Isto não é civilização! Vejais as vossas roupas! Usava-se isto em Vetusta há meio século atrás!
- Meio o que?
- Século! Ora! O conjunto de cem anos!
- Anos?
- Anos! O conjunto de trezentos e sessenta e cinco dias!
- Trezentos e sessenta o quê? Dias?
- Não sabem os números por aqui?
- Números?
- Ai, meu Deus! Sois mais rudes do que eu imaginei! Vou-me embora daqui. Não me quedo mais um segundo nesse primitivismo!
“O forasteiro passou a recolher mais apressadamente os objetos restantes, tomando-os das mãos das pessoas, antes tratadas como potenciais clientes e agora vislumbradas como primitivas, atrasadas, incapazes de entender o mundo fora da cratera (caverna?) e, definitivamente, condenadas ao fracasso e à escuridão”.
“Trancou o baú novamente e se dirigiu ao cavalo, sendo observado atentamente pelos habitantes da freguesia. Amarrou o baú no lombo do animal e logo se armou, dirigindo-se ao grande paredão de montanhas que dividia a freguesia do resto do mundo. Voltou o olhar superior aos homens que o observavam, e não hesitou em afirmar:”
- Vetusta é não muito longe daqui. Três dias e duas noites a cavalo.
“Antes que alguém pudesse indagar ou pelo menos rogar mais informações acerca do novo mundo que há pouco se descortinara, o cavalo apressou os passos e o forasteiro desapareceu no redemunho de barro e de poeira que o seu rápido movimento provocou na terra”.
[continua...]

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Réplica

Desculpem a falta de educação, a interrupção. Nunca desculpem a falta de desejo. Desejo de ser algo, de ser alguém. Não tentemos definir um sentido ao "ser alguém", não é essa a intenção. Mas vamos ser sinceros, singelos! Estamos todos reunidos, vivemos em um mundo mais ou menos comum. Comemos coisas parecidas, instituímos maneiras de reprimir o diferente, e, com tudo isso, perdemos o alento pela real criatividade. Somos livres prisioneiros do pensamento. Desde a maneira de falar, até as próprias palavras utilizadas, somos reféns das pré concepções. Aproveitar a chance de caminhar solo, de criar fronteiras próprias é uma diligência que não ocorre a muitos. Talvez pela ironia que é buscar apoio sentimental no outro, talvez pela ausência de ímpeto. Não sei.

Não, Rebecca, não estou tentando me redimir. Quero que entenda meu ponto de vista. Se estamos diante do abismo, por que não pular? Viver o resto da vida na ponta dos pés parece-me muito mais doloroso. Não acha? É tão difícil encontrar alguém que agarre a causa, que lute pelo que quer sem pensar na repressão que lhe atinge. Ah, não, não me venha com essa. Como poderia pensar nos outros? Algum deles, por acaso, pensa em mim? Sim, seu silêncio diz muito, sua reprimenda animal. Desculpe! Desculpe. Estou ansioso. Quero viver a vida, quero ser feliz, quero andar de patins à tarde e ser rico ao mesmo tempo. AH, deveria morar em outro país, então, não? (Risos). Sim, estou falando sério. É, roubar é outra opção. Uma que não condiz muito comigo. Não me entenda mal, não quero julgar aqueles que o fazem. Até porque, não sei de suas necessidades. O problema é que não me cai bem esse papel. Olhe minha cara, não sei mentir, fingir estar morto.

Aliás, há coisa mais deprimente que se fingir de morto? Melhor morrer protestando que fingir estar morto para não fazê-lo. Não acha? Ah, Alice, esqueça essa bobagem Não quiseram insultá-la. Sua personalidade só condiz com essa última colocação. Por isso te olharam. Não, querida, não chore. Não, não queime seus dedos. Isso. Relaxe. Não. Não acho que seja assim. Eles que a enxergam dessa forma. Eu? Eu a venero, admiro, desejo. Assim é melhor? Pronto, resolvemos. Depois dizem que vocês são frutos de minha imaginação. Estão brincando comigo.