segunda-feira, 9 de julho de 2007

15º Dia: Alegoria do Caldeirão Fervente (V)

E a essa sucessão de fatos inesperados designaram aqueles homens sentidos tão incomuns quanto os próprios acontecimentos. O aparentemente inexplicável, transgressor da normalidade, transformou-se no surreal, no perfeito, no divino. Transformaram a velha anciã em mártir. Afinal, morrera afirmando humildemente a verdade. A sua verdade, tão negligenciada e zombada por todos, era, na visão daqueles condenados, a afirmação do futuro, a resposta de alguém que muito viveu e que entendia tais desígnios melhor do que qualquer um deles.
O homicida não suportou o constrangimento de ter sido responsável por tal desgraça e, no mesmo dia, seu corpo jazia dependurado em uma corda, na porta de sua própria casa. Ao assassino, o desprezo de todos; à velha, uma vez mártir, uma cabana construída com a melhor palha, bem no local onde falecera, em franca homenagem à pessoa que revelara o poder dos deuses aos homens.
- Como não tínhamos percebido isso antes? – questionava-se na freguesia.
Sol e lua, agora reverendados como deuses, passaram a receber oferendas e preces. Ao longo do tempo, rituais foram se perpetuando e se formalizando. Nada era considerado mais divino do que erguer uma cuia cheia de água ao céu e repetir as mesmas palavras da anciã: ‘Nossos bons protetores, deuses da nossa origem, do nosso destino e da nossa sina, recebei tudo o que possuímos e fazei com que esse cadinho se multiplique, mais e mais, para que possamos viver em paz os nossos desígnios’.
Pessoas mais próximas aos rituais foram se firmando como líderes na freguesia. A liderança, outrora vislumbrada nos homens mais corajosos e fortes da comunidade, capazes de vencer os maiores obstáculos físicos e naturais, passou a ser vista naqueles que pregavam os ensinamentos da anciã e os que mais cuidavam dos ritos e das celebrações dos deuses.
Os valores morais dominantes na freguesia foram absorvidos pelo incipiente movimento e as normas pregadas pelos líderes ganharam um efetivo toque de legitimidade: a tez divina. Pouco a pouco, os líderes religiosos foram percebendo o poder que possuíam sobre a conduta dos demais habitantes. Um poder que os assustava, mas, ao mesmo tempo, os imbuía de orgulho.
Um período de franca prosperidade assentou-se na freguesia: as plantações progrediram, os bichos nos currais se multiplicaram e as pessoas aumentaram em quantidade. Os habitantes já não se sentiam condenados, mas, sim, libertos.
Diariamente, quando o sol se encontrava a pino, verticalmente ao solo, os líderes do movimento dirigiam-se aos transeuntes defronte da cabana construída em homenagem à velha e lhes pregavam os bons costumes e valores, realizando rituais em homenagem aos deuses:
- Nós somos como os vaqueiros que regem o gado. Vós sois o nosso gado. Quando o vaqueiro rege os bois e as vacas de forma correta, o gado prospera – afirmavam os homens que cuidavam da religião.
- Meu senhor, o que são os pontos brilhantes no céu da noite? – perguntou uma criança.
Sem saber o que responder, o vaqueiro do gado humano dirigiu-se discretamente aos seus companheiros, também líderes do movimento, em busca de uma cola.
- Não sei o que dizer – cochichou – esse povo pergunta cada coisa esquisita. O que eu respondo?
- Inventa alguma resposta! – disse-lhe o seu colega.
O vaqueiro então retornou à criança, que esperava ansiosamente uma resposta no meio de uma multidão de pessoas, e, sem titubear, doutrinou:
- Quando morremos, o nosso corpo é comido pelo chão, mas a nossa inteligência e os nossos sentimentos não morrem, eis que são dissociados do nosso aspecto físico. Eles viram um pontinho branco brilhante no céu, que reflete a nossa antiga existência. Ficam ao lado do sol e da lua, testemunhando os acontecimentos daqui de baixo e reportando-os, detalhadamente, o que for relevante. São ajudantes dos deuses. São as estrelas! Vejam aquela mais forte, ao lado da lua. É a velha anciã, a sua colaboradora-mor.
- Todos os homens viram estrelas quando morrem?
- Sim! Mas decerto é que os homens mais virtuosos se quedam mais perto dos deuses. Olhem para o céu! Há estrelas distantes e apagadas; outras, no entanto, brilham fortemente. Seja virtuoso e estará perto dos deuses, brilhando muito!
- E qual a receita para a virtude?
- A virtude pode ser alcançada por todos, desde que obedeçam aos valores básicos ditados pelos deuses. Número um: agradeça a vida aos deuses, todos os dias, com uma cuia cheia de água erguida ao céu. Número dois: peça desculpas pelos seus erros. Número três: jamais traia os seus companheiros. Número quatro: ame a sua família, principalmente a sua mãe...
- Família? Tenho escutado essa palavra ultimamente... O que significa?
- Os homens não são isolados e nem independentes entre si. Veja os outros animais. A vaca protege os seus filhotes e lhes dá leite. Assim como são os animais, são os homens. Vocês saíram do ventre de uma mulher. E só quem já pariu sabe a dor que é botar um homem para fora do corpo. Nós somos sementes que germinaram na barriga de uma mulher, e crescemos, crescemos, até termos força para vivermos sozinhos aqui do lado de fora. O amor de uma mãe evidencia-se pela dor e pelo sacrifício que é deixar um bebê crescer dentro de si e depois colocá-lo para fora. Essa dor deve ser reparada. E dor apenas se repara com amor. Amor do filho à mãe que lhe colocou no mundo, e aos irmãos, que são da sua mesma estirpe. A família é a união de uma mãe e dos seus respectivos filhos, acolhidos por um homem mais velho que satisfaça os desejos dessa mulher, quando estiver fora dos dias de sangue, e dê provimento às necessidades de seus filhos. Cada um tem o seu papel na família, que deve ser cumprido com zelo e amor.

E assim sucedeu durante anos, décadas e séculos, quiçá milênios. Os líderes da religião tornaram-se chefes da comunidade. Passaram a ditar os valores, as normas e a decidir as sanções para os membros recalcitrantes. Líderes e liderados, vaqueiros e gado, chefes e súditos: uma hierarquia em nome e a serviço dos deuses. Religião e poder celebraram, a partir de então, uma duradoura união entre si, capaz de ensejar infindáveis, frutíferas e medonhas conseqüências.
[continua...]

quarta-feira, 4 de julho de 2007

14º Dia: Alegoria do Caldeirão Fervente (IV)

Entoe as trovas
perante as trevas!
Cante a morte e
poetise a água que cai do céu!
Alguns morrem para vida dar;
outros morrem para evidenciar
as falsas verdades em que teimam os condenados acreditar.

E depois do silêncio-estático,
do silêncio-mudo-ensurdecedor
perante as verdades
(sim, as falsas verdades!)
da velha que jazia no barro
(do barro veio e ao barro voltará),
para o concerto da cena mítica encerrar,
os loucos,
aqueles engaiolados-despirocados-surdos
insanos-desmentidos-perdidos,
desvencilhados das amarras do ferro e da vida,
em fila indiana,
os braços erguidos (oh!),
a água caindo,
o caminho em direção à velha.
Ao ponto:
o corpo rígido erguido ao céu.

Entoe as trovas
perante as trevas!
Cante a morte e
poetise a água que cai do céu!

E saem os três aloucados,
recitando verdades ininteligíveis,
carregando a morte,
os olhos ainda abertos,
a água caindo forte,
a sina do cumprimento da verdadeira missão diplomática da freguesia:
entregá-la aos deuses do céu.
Em tempo.