quinta-feira, 24 de maio de 2007

1º Dia: As rosas não falam

É durante madrugada, enquanto a cidade dorme, que gosto de andar pelas ruas. Os pés caminham descalços, sempre. Desde criança, nunca gostei de andar calçado. Gostava mesmo era de sentir a firmeza do chão, a dureza da vida. Andava pela caatinga de cima a baixo, pisando nas pedras, nas plantas, nos espinhos, nos bichos. Quando eu ainda nem era adulto, meus pés já não criavam calos. Uma crosta de pele dura havia os envolvido e assim eles permanecem até hoje.

A cidade dorme.

Vou caminhando pelas ruas, calmo, lento. O meu sono não tem pressa. Bate uma brisa fresca no meu rosto. O silêncio da madrugada é interrompido, raramente, por um carro que passa. Vou percorrendo um caminho sem destino, por aqui e por ali, observando o mundo que sinto e designando sentidos para cada lugar que passo. Não gosto de chamar as ruas pelos seus nomes usuais. Arrepia-me a idéia de dizer Rua Epitácio Pessoa ou Avenida das Nações. Não, não, não gosto desses nomes sem sentido e impensados que os homens vão atribuindo aos lugares que passamos. Prefiro chamar a Avenida das Nações de rua da rosa, por causa de uma roseira linda e solitária que um dia achei no meio do capim do meio-fio, ou a Avenida Epitácio Pessoa de rua da minha mãe, por causa de uma senhora que por ali vi há uns anos, no meio da madrugada, trôpega, e jurei que fosse a minha amada (e desconhecida) genitora.

E se hoje chamo uma via de rua da rosa, amanhã posso vir a chamá-la de outro nome, e assim por diante. Basta que algo diferente e mais profundo me sensibilize da próxima vez em que eu passe por ali. A antiga rua do atropelamento hoje chamo de rua das chinesas, e a antiga rua da morte (onde há um cemitério) hoje chamo de rua da vida (onde, na porta do cemitério, uma senhora de cinquenta anos deu luz a gêmeos).

Odeio a idéia da imutabilidade. Posso até fazer as mesmas coisas todos os dias, andar pelos mesmos lugares, cumprimentar as mesmas pessoas, comer as mesmas comidas, mas com certeza penso, em cada momento e em cada repetição, coisas diferentes. Cada vez que passo pela rua do esgoto fedorento ou cada vez que leio o mesmo livro que li semana passada, sinto o novo. Não estou aqui falando do velho carpe diem, traduzido por alguns como viva seus dias de um jeito diferente em todas as horas. Estou falando de algo mais profundo, interior, inegável, talvez fisiológico. Eu penso. Penso. Penso. E não penso as mesmas coisas em todas as horas e muito menos no mesmo segundo. Não decido o que penso nem o que sinto. Eu penso. E não quero hoje ir mais além do que esse verbo. Não quero ficar hoje divagando, como faço às vezes, tentando descobrir os motivos pelos quais os neurônios trabalham ou as pretensas categorias do pensamento (que insistem em afirmar alguns doidos que escrevem sobre isso). Não. Hoje quero apenas estacionar nessa divagação. Eu penso. Obtenho diferentes observações cada vez que olho a mesma roseira solitária que vive na rua da rosa, ou cada vez que sinto o perfume da Ceci, nas tardes da biblioteca. Penso um turbilhão de coisas num mesmo segundo, como uma profusão de constatações advindas de todos os modos com que tenho contato ao que é externo a mim. Eu enxergo, eu sinto odores, eu sinto gosto do que ponho na boca, eu ouço, e eu me arrepio com o que toca o meu corpo. E tudo isso num mesmo instante, sem que eu ordene, decida ou controle, sem que eu tenha ao menos tempo de refletir profundamente sobre quais fenômenos estão acontencendo dentro e fora de mim. Eu vou atribuindo sentidos ao que passa, sentidos que absorvi de outros sentido que os homens criaram, mas que vou tentando mudar aqui e ali, juntando, dividindo ou substituindo, criando a ilusão de que eu crio meus próprios significados e vou me desvencilhando dos homens, mas, ainda assim, tendo a certeza de que, quanto mais acho que me distancio, mais me torno refém do que pensam eles. Os homens...

A cidade dorme.

Num dia em que andava tranquilo pela rua das vacas, vi um pontinho vermelho no meio de uma imensidão de verde. Sem nem ter muita noção do que estava fazendo, corri para entender o que era aquilo. Ia fazendo inúmeras divagações na medida em que me aproximava do ponto vermelho, até constantar, de maneira indubitável, que se tratava de uma roseira. E que linda roseira. Havia uma rosa linda, enorme, e outras duas pequenininhas que estavam na iminência de desabrochar. A partir de então, a rua das vacas passou a se chamar rua das rosas.

Todos os dias eu passava por ali para admirar as rosas que ora morriam, ora nasciam. E cada dia descobria um aspecto diferente daquela planta, desde um sulco mais grosso que trasladava o caule até a grossura dos limbos das folhas da planta. Passava horas a fio sentado ao lado da roseira, observando milimetricamente todas as suas nuances. Voltava inquieto para casa, angustiado para saber o que eu acharia de novo no outro dia. Será que um dia seria capaz de esgotar todas as características da roseira que eu poderia descobrir?

Não, parecia não esgotarem as possibilidades. Cada vez que a olhava, percebia uma coisa que não havia percebido nos dias anteriores. Era como se o acaso me direcionasse inevitavelmente para a observação de um novo aspecto da planta. Preocupado em não incorrer em repetições, passei a anotar, como num diário, as observações novas que, a cada dia, inferia da roseira. Todas as manhãs corria eu à rua da rosa, caderno e lápis em punho, para observar a roseira. A experiência botânica durou meses, até que a seca chegou e nenhum broto novo nasceu, as folhas foram amarelando, o caule foi enrijecendo e, para o meu desespero, numa manhã, quando eu lá cheguei, os coletores de lixo haviam arrancado-a do solo.

Com os olhos cheios de lágrimas, gritei pela roseira, corri pela imensidão verde do mato, o dedo em riste, apontando para o nada, invocando a roseira e injuriando quem quer que a tivesse assassinado. Num impulso de raiva, não hesitei em pegar o caderno, rasgar folha por folha e engolir uma a uma. Os homens me olhavam espantados, surpresos. E eu proclamava para todos os atônitos que ali me observavam que aquela roseira, única e solitária, despretenciosamente, fizera-me um filósofo. Depois daquele dia, evitei passar pela rua da rosa. A rua perdera o seu principal sentido e eu não queria que outro significado tão mais profundo subjugasse a história da rosa. A idéia de passar por ali passou a me dar medo.

4 comentários:

Unknown disse...

Eu adoro as imagens criadas, a força que as palavras adquirem e a capacidade singular de impactar quem lê. Entretanto, há um fechamento hermético no texto que não traz uma reflexão, mas uma interpretação de metáforas muito boas.
Afinal, a leitura impressiona aqui, é uma força que prende quando se lê, uma vontade de chegar ao final e saber o quão profundo ainda vai.

Unknown disse...

Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? (Raduan Nassar, Lavoura Arcaica)

Lara disse...

Muito bom texto! Bem escrito e manuseado com cuidado. Pontuação impecável e palavras simples que, do modo que foram utilizadas dá uma força excepcional às metáforas. Isso mostra que um texto não precisa ser complicado ou ter uma linguagem mirabolante para ter valor litarário.
Só acho que se ele tivesse acabado na última fez que o autor escreveu "A cidade dorme." ele teria sido muito mais impactante. Não que o que veio depois não tenha sua importância. Pelo contrário, poderia ter sido outra parte do diário. Se o fim fosse onde falei, o texto terminaria mais ou monos como começou, com seu próposito reflexivo atingido de maneira mais profunda. Mas essa é só a opinião de uma leitora um tanto chata.

tmartorelly disse...

"A Concatenação é uma operação binária, definida sobre uma linguagem, a qual associa a cada par de palavras uma palavra formada pela justaposição da primeira com a segunda. Uma concatenação é denotada pela justaposição dos símbolos que representam as palavras componentes."