segunda-feira, 28 de maio de 2007

Alto Relevo de Resignação



Representação. Reconheci essa palavra hoje. Acolho-me da humildade para dizer que não a compreendi, mas o silêncio por dentro de máscaras nunca me foi tão fielmente remontado. Não penso antes de escrever. Aliás, não penso antes de agir, de sentir. Defino depois. Crio sentidos depois. Sempre somos mais introspectivos após a segurança do ato constituído. É, dura constatação. Hoje li frases familiares, ao mesmo tempo desconhecidas. Não sei se as escrevi há algum tempo. Não sei se nunca as tinha visto antes. O que importa? Talvez as escrevi e nunca as vi ao mesmo tempo. É difícil remontar, reconstituir. Por isso, representar. Redefinir, na imaginação, o que está ao alcance de meus sentidos forjadores da realidade.

Reconheço o limite dentro desse escopo calado. Mereço melhor explicação, empreendo significados intrusos. Perdão. Retiro minha colocação. Estou no limite de meu pensamento. Às vezes me confundo com minha própria imagem. Como meu amigo, João Paulo, percebo minha condição de moeda: sou jogado no mundo para me virar. Condição humana, condição repelida pelos bastidores naturais. Como empenhar-se em definir o que não me é plausível? Ando, ando e ando. Conheço lugares. Reconheço lugares. Depois leio sobre os mesmos, em livros de minha autoria, sem lembrança alguma das ruas, dos monumentos e de minhas memórias inscritas em seus arredores. Estou à beira da loucura.

Retruco essa afirmação. Estou mais lúcido do que nunca. Louco são meus parceiros de conversa. Outro dia, buscando meus óculos escuros, notei minha mão esquerda tremendo. Busquei a vela em cima do móvel, ao lado de minha cama. Nunca sei o nome desses objetos. Pulo todas as linhas dos livros que tentam me explicar essas denominações inúteis. Mas enfim, a segurei para decifrar meu problema. Estou tremendo porque posso? Ou estou tremendo por incapacidade física de manter minha mão estável?

Retorno. Volto à vela. Minha mão entoava sua superfície lisa enquanto o fogo, como se lutasse contra seu maior inimigo, se exaltava por toda a parte. Vi-me perdido naquele momento. O fogo, que não possuía um grão de vida a mais que eu, respondia aos traçados do mundo de forma muito mais vivaz. A cera derrete. Traz a sensação aos meus dedos. Estão enxaguados pelo véu entusiástico da resignação. Talvez por saber que estava com seus dias contados, a combustão se encantava com minha dor e eu, por respeito à sua breve morte, permanecia entregue ao ardente edredom branco que envolvia minhas extremidades.

Repouso. Foi aí que percebi. A força de vontade, a escolha, se assim melhor lhe incumbir, nada me serve. Especialmente quando estou deslumbrado com um acontecimento único, resplandecente, encantador. Minha mão tremia, e nada percebi até o fogo se apagar. Minha pele, antes enrugada somente nas dobras dos dedos, preenchia-se de bolhas e riscos vermelhos, todos cobertos pela névoa pacífica da mesma substância que dava vida ao incandescer anterior. Tranqüilidade agonizante. Dizem que após um determinado tempo, nossos nervos são destruídos ao ponto de não sentirmos mais a queimadura. Qual o sentido do mundo se nada sinto? Não me agüento de rir. Como seria proferir uma frase dessas sem poder sentir o quanto é burlesca?

Reprovo essa possibilidade. Adoro sentir. Perfeito, sinto o próprio sentir. Ele é um invólucro de meu ser, de meu estar no mundo. Retirar de mim, ou do mundo, a capacidade de sentir, seria impedir o relativo, impedir o individual. Viver num mundo objetivo, no qual só existe um amor, um jogo de cena e um pôr-do-sol seria uma blasfêmia ao corpo fogoso da vida terrestre. Sinto-me bem por poder queimar, por estar vulnerável diante da cera personificada. Aliás, sou mais vivo que o fogo pela minha capacidade de sofrer. Sofrer nada mais é do que poder sentir felicidade. Não é possível ser sofredor se nunca esteve feliz. O sofredor é, necessariamente, um antigo feliz. Que absurdo. Objetivar o não objetivo. Será possível ser feliz eternamente? Ora, essa pessoa sabe que é feliz, ao ser sempre feliz? Ah, o sofrimento despe o ridículo, e o torna formoso.

Reluto com minhas indagações. Aprendi hoje, representação é reproduzir o que se pensa. Reproduzir é apresentar, novamente, o que, de certa forma, já foi em alguma hora apresentado. Aqui, nesse diário tão meu quanto seu, busco representar minhas montagens do real. Logo, tento apresentar, novamente, o que eu penso, o que eu sinto, como se isso já estivesse sido apresentado, em alguma outra instância, durante algum outro momento. Eu não penso antes de escrever. Não procuro palavras propícias ao fraseamento perfeito. Invento conceitos. Sinto retoques nos mesmos. Mas nunca, nunca, tenho em mente o que está no papel, antes mesmo dele estar ali. Talvez por isso não entendi a palavra. Talvez por isso, hoje, estou feliz. A palavra genérica, a expectativa comum estava aquém da minha maneira de ser. Uma palavra genérica, a todos impostas, que não conseguiu definir minha forma de ser, que não foi capaz de englobar meu comportamento.





3 comentários:

Unknown disse...

Em geral, eu tenho de ler duas ou três vezes tudo o que o Gustavo escreve. Isso por dois motivos: primeiro, porque ele ainda não é tão bom assim e o texto fica confuso, emaranhado e complicado. Segundo, por pontuações geniais que existem ali no meio. Não há imagens, não é um texto rico em metáforas ou analises, mas sim em reflexões e possibilidades de reflexões. Eu gosto do caráter intimista, de quem está jogando para fora palavras de angústia e tormento reflexivo.

Unknown disse...

Algo aqui, sobre a experiência da dor, me lembrou um poema no Rilke, do porta estandarte, que fica no final do cartas a um jovem poeta.

Lara disse...

À primeira vista, pode parecer um texto muito díficil de ser entendido. Muitos parariam de lê-lo já no primeiro parágrafo. Outros mais obstinados releriam cada palavra atá entender o que o personagem está falando. Um terceiro grupo de leitores, que pensam como eu, veriam que o secredo de entender um escrito assim, ainda mais um diário, é perceber que não tem que fazer sentido, não tem que ser linear, nem óbvio, nem inflamado. O pensamento não funciona assim. Nós não funcionamos assim. Só gostamos de ler o que se enquadre mais ou menos nisso.
Acho que aqui o verdadeiro propósito da criação desse diário foi atingido. Aqui é que dá para ver quem realmente é esse personagem, o que ele sente, como vive, no que acredita. E se era esperado que uma autoreflexão fosse feita, a disciplina foi bem sucedida porque em cada linha há um pouco do Gustavo, do que ele é.
Além disso, o retorno à idéia inicial termina o texto com chave de ouro. Mostra que ele tinha um objetivo maior e dá uma noção de fechamento muito mais concreta. Aliás, todo o último parágrafo é brilhante. Provoca o leitor, ativa a reflexão e torna, então, uma leitura tão desafiadora algo que vale a pena.