quinta-feira, 31 de maio de 2007

3º Dia: Dos tempos de cólera (I)

O lugar onde tenho a mais forte sensação de liberdade é o quartinho alugado onde moro. Voltar para casa depois de um dia de intenso trabalho e me trancafiar sozinho no meu próprio mundo traduzem uma sensação de paz e contentamento interno tão grande, que a vontade que tenho é de jamais sair ao mundo dos homens.

Todos os dias, subo na minha cama, fecho os olhos e abro os braços o máximo que posso. A ponta do maior dedo da minha mão esquerda toca uma das paredes, e a ponta do maior dedo da mão direita toca a parede oposta. Sinto-me como se estivesse abarcando o meu mundo com os braços; sinto-me superior e independente de tudo; sinto-me altivo, longe dos homens; sinto-me livre.

A minha maior liberdade é sentida num minúsculo cubículo fétido e úmido de um cortiço na zona baixa da cidade. Às vezes, nem eu me entendo...

Ao lado da minha velha e aconchegante cama de madeira, que ocupa quase todo o espaço do recinto, fica uma cômoda de quatro gavetas onde guardo roupas, livros, pertences e, em especial, uma caixinha de papelão, de cor vermelha, em formato de coração, onde ficam um peão, duas fotografias e este diário que escrevo. O peão é um brinquedo que guardo desde criança, como uma nostálgica lembrança do meu passado; uma das fotografias é de minha mãe, que não pude conhecer; a outra fotografia é de Vesúvia.

Desde que eu me entendi no mundo, quando ainda era pequeno, eu morava com Vesúvia. Era uma mulher alta, forte, cabelos bem negros malcuidados e divididos em duas tranças bem longas, os fiapos brancos já aparecendo, o rosto cansado, tostado e enrugado pelo sol e pelo próprio tempo. Vesúvia apenas vestia preto, e sempre no pescoço deixava dependurado um longo e pesado terço de madeira.

- Eu não sou tua mãe, não, Pingolim – sempre lembrava.

O único aspecto de seu passado que eu sabia era a sua nacionalidade portuguesa e o seu estado de viuvez. Vesúvia viera de Portugal ainda jovem, recém-casada. Seu marido, julgando-se visionário, cismara que um melhor futuro encontrariam no Brasil. Vieram para cá somente com as suas respectivas caras e coragens, sem grandes planos ou recomendações. Perambularam por muitos lugares e finalmente chegaram ao sertão, o destino dos sem-destino, para onde se vai quando tudo o mais não dá certo.

Mas Vesúvia subitamente enviuvou. E só sei de sua história até esse ponto. Os detalhes restantes todos comentavam por cochichos, mas nada chegou aos meus ouvidos.
- Teu nome não é Pingolim, mas te chamo assim porque quero.

Vesúvia me dava medo.

Pela manhã, vinham todas as crianças da freguesia para as aulas da mestra Vesúvia, que ensinava as letras do alfabeto, as orações, os cânticos de Jesus e os ensinamentos morais. Eu não podia assistir às aulas com as outras crianças, tendo que ficar sozinho no porão, lendo os livros que ela me passava.

- Não te mistures aos homens, Pingolim.

Pela tarde, enquanto todas as crianças brincavam na rua, Vesúvia vinha tomar a lição comigo. Fazia perguntas sobre tudo o que eu havia lido na manhã, olhando sempre mais forte para a palmatória quando eu estava na iminência de titubear alguma resposta. Após a lição, eu sempre era obrigado a comer um mingau de aveia, quente e salgado. E apenas se eu comesse tudo poderia brincar de desenhar, com os lápis coloridos e as tintas, enquanto ela, frente ao altar que havia na sala, rezava três vezes o mesmo terço, em latim.

- O mundo dos homens lá fora é perigoso, Pingolim – alertava Vesúvia.

E fui crescendo sozinho, mergulhado nas minhas leituras, nos meus desenhos e no mundo criado por mim mesmo. Um mundo parecido com o que eu lia nos livros, cheio de personagens, bonitas paisagens bucólicas e serranas, histórias maniqueístas de reis e de nobres, de príncipes e de mocinhas. Tudo muito diferente do mundo dos homens, entocado no meio do sertão, do calor e da seca, onde pessoas morriam de fome e de sede, onde as árvores não cresciam e tudo já nascia condenado ao fracasso. A minha maior alegria era quando vinha o caxeiro viajante e trazia livros novos, alguns que nem eram da mesma língua que a gente fala, não obstante eu tentasse decifrar o que aquelas letras embaralhadas significavam:

- Isso é francês, Pingolim. Quando tu cresceres, eu te ensino.

- Mas quando eu vou crescer?

- Tu és intanguido assim de ruindade – sentenciava.

Todas as noites, desde criança, escutava vozes estranhas, de pessoas que eu não conhecia nem via, e que falavam coisas que eu não conseguia entender. Por vezes, elas se multiplicavam, entoando uma profusão de vozes que faziam meus pensamentos embaralharem. Eu tentava fechar os olhos e dormir, mas o que via era um jogo de cenas que se sucediam na minha mente, cada vez mais rápido, até o ponto em que eu me revirava irrelutante para os lados e gritava:

- Vesuuuu, és tu quem fala comigo?

- É o vento, Pingolim, que rodopia por entre as árvores e confunde os teus ouvidos.

Com o passar do tempo, as vozes foram se tornando mais nítidas e escassas, até o ponto em que ouvia apenas uma voz doce e feminina. Era uma sensação estranha, pois era como se a voz viesse de dentro de mim e conversasse comigo, lenta e pausadamente. Inicialmente, a descoberta dessas sensações me causou medo, que aos poucos se pacificou e só assim pude me acostumar com a minha interlocutora: era a Ceci.

Ceci se tornou a minha amiga de todas as horas, a companheira nas leituras, a crítica dos meus desenhos, a sopradeira na hora de tomar as lições e de esfriar o mingau quente de aveia. Ceci era como eu, perdia-se nos livros e nas leituras. Possuía uma imaginação tão fértil, que às vezes eu me espantava com a sua inteligência. Provavelmente não teria vindo do mundo dos homens, logo eu imaginara.

- Tu não precisas me ver para gostares de mim, Pingolim. Só é preciso que eu conheça o teu coração e que tu conheças o meu – cochichava Ceci no meu ouvido.

Eu já tinha uns quinze anos quando o sertão foi abatido por uma seca braba, mais forte que a dos anos anteriores. Eu nunca havia visto algo naquela intensidade. As árvores foram amarelando, as vaquinhas foram emagrecendo e o rio Pituba foi minguando até passar apenas um fiapo de água, que não dava nem pra encher as cuias.

Vesúvia corria desesperada todos os dias para ver os bichinhos que emagreciam, os capotes que morriam de sede e a corrente de rio que minguava. Ela punha sempre as duas mãos na cabeça, aflita, olhava para os céus e gritava:

- Maldito aquele que me trouxe para esse inferno!

Eu espiava Vesúvia pela fresta da janela, mas logo voltava aos meus livros, com receio de ser surpreendido, e lá sempre me esperava Ceci, como um sopro de vento que rodopiava e me envolvia.

No entanto, a seca foi piorando e logo vieram rumores de que, no mundo dos homens, muitas pessoas estavam morrendo doentes e fracas.

- O que será de nós, Vesu?

- Deus proverá, Pingolim. Deus proverá. – repetia ela, como um mantra, com um ar misto de esperança e ceticismo, contando pelas janela quantas animais ainda restavam no curral e quantas cuias de água ainda restavam cheias.

Naquele dia, quando eu fiz minha arte no papel, desenhei um senhor velho, barbudo, sentado confortavelmente numa cadeira de balanço de madeira rústica, trajando uma roupa bonita, farta, um casaco de pano bom, anéis de ouro nos dedos e colares no pescoço. Fumava um cachimbo que expelia uma longa fumaça cinza. O seu rosto tinha uma feição tão estranha, que nem eu mesmo consegui decifrar se era contentamento, ironia ou indiferença.

- Que é isso, Pingulim? Um coronel de engenho?

- É não Vesu... – baixei a cabeça, um pouco envergonhado – é Deus.

- Deus?

A feição de Vesúvia mudou completamente, como se tivesse levado um susto ou não acreditasse no que eu havia dito. Os seus olhos me fitaram longamente, denotando raiva e repreensão:

- Você não entende nada de Deus! – sentenciou e saiu ao altar, fazendo incontáveis vezes o sinal da cruz e apertando fortemente o terço que carregava no pescoço.

Nesse mesmo momento, passava um cortejo pela rua. Corri para a janela e espiei. Era mais um velório. Morrera mais um homem, de fome, de sede e de fraqueza. Os homens na procissão entoavam cantos da Igreja, numa únívoca e fraca voz, lenta e arrastada, como se estivessem a caminho do próprio calvário. As velhas carpideiras seguiam chorosas, cumprindo o seu papel, no início do cortejo, anunciando a morte, a velha companheira e amiga de todos ali. O corpo do falecido ia numa rede, carregada por dois velhos de roupas rasgadas, trôpegos e arquejantes. Uma senhora caminhava ao lado, carregando num andor a imagem de um santo.

Com exceção das velhas carpideiras, que choram por profissão, nenhuma pessoa chorava no cortejo, nem mesmo os parentes do falecido. A morte se tornara tão comum e previsível naquele sertão, que, para alguns, já era considerada um alívio.

Mas que Deus é esse que nos submetia a um calvário? Que Deus mais parecido com um coronel de engenho, que, igualmente a um capataz, faz os homens sofrerem, matando-os de fome, de sede e de cansaço, de lapadas e balas, e que depois senta confortável na sua cadeira e fuma o seu cachimbo?

- Isso é castigo! Oh, castigo! – resmungava Vesúvia, como se ouvisse o meu solilóquio.

Que Deus é esse que castiga, que faz sofrer? Deus não é amor e perdão? Que Deus é esse a quem todos esperam, calados e resignados? Quem é? Quem é? Que Deus é esse a quem todos invocam, esperançosos e céticos? Que Deus é esse em quem todos os homens depositam os seus anseios e os seus desejos, mas que parece negligenciar os gritos de dor?

E essas imagens de barro, que afirmam serem santas, o que são? Que homens foram esses que se tornaram tão amados e tão especiais? Será que viveram no mundo dos homens ou viveram nos seus próprios mundos?

Que Deus é esse que se vinga, que olha feio, que não manda chuva a quem precisa? É um Deus que ama e que odeia, vê desastres e continua indiferente, escuta clamores e tampa os ouvidos, sente a dor alheia e não tem piedade. É um Deus que julga os homens na cadeira dos réus, colocando pesos e contrapesos na sua balança imaginária, ponderando e calculando rigidamente os desvios da sua arbitrária lei, alcançando, enfim, um julgamento aclamado pelos homens, culminado pela aplicação de um castigo e nomeado pela indecifrável palavra Justiça.

Enfim, é um Deus tão humano e imprevisível quanto todos os outros homens, chegando eu a desconfiar de que ele seria um homem, tão imaginário e ordinário quanto qualquer outro exemplar dessa espécie.

- Deus proverá... Deus há de prover... Há, sim! Ora se não há! É o nosso pai, nosso criador! – resmungava Vesúvia, já não mais o invocando solenemente, mas lhe exigindo desesperadamente uma atitude imediata.

- O pai de Deus é o homem, Vesu.

Ela percorreu a sala lentamente, fitando mais uma vez o meu desenho de Deus coronel de engenho que estava sobre a mesa. Franziu a testa e afirmou, impiedosamente, o dedo em riste:

- Tu não entendes mesmo nada de Deus, Pingolim. Nada! Nada! nada! Tantas lições que eu já te dei e não aprendeste nada. Tu és um ingrato. Vais ser castigado!

- Castigado por Deus ou pelos homens?

Vesúvia me encarou longa e firmemente, o olhar vermelho, preparando-se para dizer mais uma intempérie. Desistiu. Pegou o papel com o meu desenho e o amassou lentamente, como se tivesse prazer em fazer aquilo.

Eu não aguentei aquele olhar vermelho tão fortemente lançado sobre mim e corri subtamente para os meus livros, à procura de Ceci. Mas ela lá não estava. Gritei baixinho pelo seu nome. Ceci! Ceci! Ceci! Onde está você? Mas apenas obtive como resposta o silêncio. Um silêncio de ansiedade, receoso, ensurdecedor, que arrepia os pelos e faz doer o estômago. Corri pela casa esperando Ceci se manifestar, dentro ou fora de mim. Pecorri os longos corredores do sobrado onde vivíamos, revistei os quartos, a parte de baixo das camas, a traseira das estantes e tudo quanto pude alcançar. Mas não conseguia ouvir a sua voz nem sentir a sua presença. Encostado numa parede, deixei-me escorregar e caí no chão, ardendo em febre, choroso e especulando que a Ceci talvez morrera de fraqueza, levada pela seca.

- O Deus é apenas mais um homem ingrato – eu resmungava baixinho.
[continua...]

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