quinta-feira, 31 de maio de 2007

4º Dia: Dos tempos de cólera (II)

Desde esse dia, caí de cama enfermo. Entre febres e delírios, passei semanas doente, sem sequer conseguir me levantar. Doíam os ossos, os músculos, os olhos, o corpo inteiro. A fraqueza tomou conta de mim, como se um olho-grande tivesse me jogado um quebranto.

Dormia o dia inteiro e, sempre quando acordava, me deparava com o rosto de Vesúvia, velando-me o corpo, passando a mão na minha testa para sentir-me a febre. Era uma feição preocupada, como se estivesse pressentindo a minha partida. Suas pálpebras arqueadas, o nariz adunco, as rugas ao redor dos olhos castanhos vivos: era tudo o que eu conseguia ver naquele quarto escuro.

Sempre quando acordava dos delírios, duas ou três vezes ao dia, meu olhos percorriam detidamente o recinto, em busca de Ceci. Mas eu jamais a viria, logo eu lembrava. Ela era invisível. Esperava, então, sentir um vento fresco rodopiando o meu corpo, um sinal de sua presença. Mas não. Apenas via Vesúvia. Os olhos iam perdendo força e a escuridão retomava a minha mente.

Nos meus sonhos, percorria as belas paisagens das narrativas que sempre li e interagia com as personagens. Em todos os sonhos, aparecia, ao fundo, uma cadeira de balanço onde estava sentado um velho. Eu tentava me aproximar, caminhar até a cadeira, mas algo sempre me prendia. De sonho em sonho, fui chegando mais perto, e via que o velho sorria, gargalhava, e me piscava o olho. Aproximei-me mais um pouco e não tive dúvidas: era o Deus coronel de engenho:

- Vem até mim!

Por mais que eu tentasse, não conseguia alcançá-lo. Quanto mais eu andava, mais ele parecia distante, sempre rindo e gargalhando:

- Estou à tua espera.

- Eu não consigo chegar até onde tu estás!

Mas ele não respondia, apenas ria.

Olhei para os lados e percebi que estava no meio da caatinga, no mundo dos homens. Um calafrio percorreu todo o meu corpo quando tive essa constatação. Jamais sonhara com o mundo dos homens. Não queria estar no mundo dos homens, queria estar no meu mundo, criado por mim mesmo, controlado pela minha mente.

Ao meu redor, homens magros e doentes se arrastavam pelo chão, arquenjantes, disputando pedaços de pão que, naquele momento, o Deus coronel de engenho jogava, ao longe, um por um. A cada pedaço que jogava, parava e dava algumas gargalhadas.

Alguns homens estavam bastante feridos, o corpo repleto de caroços por onde saíam sangue e secreções. Havia cactos gigantes, que expeliam espinhos e como flechas atingiam os homens, que gritavam medrosos. Não falavam palavras, mas apenas gritavam. Gritos fortes e agudos, que cada vez se tornavam mais altos e dissonantes, fazendo-me doer o ouvido. Ossos estavam espalhados pelo chão e, quando olhei mais detidamente para alguns homens, percebi que alguns deles já não se mexiam. O cheiro que passei subitamente a sentir quando me aproximei de um deles não me deixou dúvidas: já estavam mortos.

Não bastasse essa constatação, urubus vieram da direção onde estava Deus e passaram a disputar as carniças humanas. Esquartejavam os corpos e despedaçavam os homens, assustando os que ainda pelejavam viver.

Deus passou a jogar água nos homens. Alguns tentavam levantar o pescoço e abrir a boca, na esperança de que pelo menos uma gota lhe refrescasse a garganta sedenta por algum líquido. Porém, a água atingia as feridas abertas dos seus corpos, e mais eles gritavam pela dor, como se tivessem levado chibatadas.

Foram morrendo todos, um por um. Os urubus passaram a não respeitar nem os quase-mortos, comendo-os, arracando-lhe pedaços, tomando-lhes o último fio de vida que persistia. Deus gargalhava, agora sentado na cadeira de balanço. Quando apenas restavam restos de corpos despaçados pelo chão, em meio a ossos e muito, muito sangue, o sol se punha, escondendo-se entre as montanhas ao fim do horizonte. O céu limpo, totalmente avermelhado, testemunhava e acolhia a cena sanguinária. Os urubus se dispersaram e a cena foi sendo desmontada na mesma velocidade em que fora concertada. A escuridão foi tomando conta do cenário e apenas continuei a ouvir a gargalhada de Deus e a revoada dos urubus, ao fundo.

O mundo dos homens era um inferno.
[continua...]

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