terça-feira, 12 de junho de 2007

7º Dia: Alegoria do caldeirão fervente (I)

‘A nossa pele dos pés era rachada e ferida, como se tivéssemos andado descalços por toda aquela imensidão de terras, tão desconhecida, da qual não sabíamos nem o começo nem o fim. Existíamos. Simplesmente existíamos. Não sabíamos a nossa origem e nem o nosso destino. Vivíamos ali, a esmo, naquela terra quente e seca, onde o vento só chegava de vez em quando. Alguns até desconfiavam que ali seria o fim. O fim. O fim do mundo.’
‘Partir? Fugir? Partir era não voltar jamais. Alguns tentaram e, infelizmente, não soubemos o que lhes restou. Não resistiríamos: argumentavam isso, sempre. Havia elevados de terras enormes por todos os lados e escalar os paredões das montanhas era tarefa praticamente impossível para qualquer um de nós. Sentíamos como se estivéssemos no fundo de uma cratera, dentro um caldeirão, flutuando num caldo de atmosfera. Um caldo fervente, cujo calor extraía todos os nossos líquidos, fazendo com que nós também fervêssemos. Fervíamos de agonia. Viver era (é?) agoniante.’
- Deixa estar – sempre balbuciava uma anciã solitária que vivia entre nós, os condenados – deixa estar.
‘Entre partir ou entre ficar, entre morrer ou entre viver, entre se arriscar ou entre se conformar, preferíamos nos entregar à nossa prisão sem celas e sem paredes.’
- Morreremos todos do mesmo jeito! – argumentava a velha anciã – e duvido de que lá do outro lado seja melhor do que aqui.
‘Das montanhas caía um fiapo de água. Tentavam em vão explicar a origem daquela água, os motivos daquela conformação, mas não havia consenso. Alguns diziam que era o acúmulo da água que caía do céu.’
‘Sim, caía água do céu! E nos espantávamos com esse fenômeno. Vez por outra, o azulado do céu se transformava numa branquidão acinzentada medonha! E começava a cair água, às vezes forte, às vezes fraca, às vezes torta, às vezes reta. A água que caía do céu era a nossa alegria. O tempo esfriava. Era como um refresco para os nossos corpos tão acalentados e torrados pelo calor.’
‘Olhar pra cima era o nosso único entretenimento. De dia, o céu tinha um tom azulado mais claro e o sol forte nos iluminava. As crianças adoravam descobrir formatos de desenhos nas nuvens. Viam bichos, dragões, pessoas, reinos e castelos. O tempo passava, as nuvens mudavam de forma, e já podíamos perceber que elas imitavam outra coisa. De noite, aparecia a lua, o céu ficava na penumbra e podíamos ver vários pontinhos brancos brilhantes.’
‘Tudo aquilo era tão lindo quanto desconhecido. Era, para nós, a imagem da perfeição. O céu deveria ser o melhor lugar de todos. Afinal, um lugar onde havia tanta água – capaz de transbordar - não poderia ser ruim.’
- A gente vive das migalhas do céu – reclamava a velha anciã.
‘Por algum tempo, passava meses sem cair nenhuma gota de água do céu. Era a desgraça. As plantações morriam, os animais morriam, as pessoas morriam. Já éramos poucos e com o passar do tempo a quantidade dos condenados que morriam superava, em número, a quantidade dos que nasciam.’
- O céu está ficando escasso de água – especulavam alguns.
- Eu acho mesmo é que por lá estão com raiva de nós – afirmava, solitária, a velha.
‘Afirmações reiteradamente repetidas tornam-se verdades absolutas. E o sol, que parecia irradiar mais calor nesses períodos de seca, contribuiu para que as pessoas começassem a concordar com a velha anciã.’
- Nunca vi algo assim. Vocês são burros? O calor que o sol nos manda está mais forte! Não mandam mais vento e nem água. Estamos morrendo! Estamos morrendo! Temos que fazer alguma coisa! Se estão nos tratando assim, é retalição! Fizemos alguma coisa que lhes desagradou!
- Mas o que poderíamos ter feito? – indagavam todos.
- Não sabemos. Talvez nunca saberemos. E pra que sabermos? Ficar remoendo essas feridas não tem sentido. Temos é que pensar em alguma solução!
- Poderíamos enviar uma comissão ao céu, e conversarmos, negociarmos com os homens que lá vivem! Tenho certeza de que, subindo por essas montanhas, chegaremos mais perto deles, e só assim eles poderão nos ouvir.
‘A velha riu ironicamente:
- Burros! Burros! Burros!
‘Mas a maioria dos condenados acatou a idéia do homem. Iniciaram as tratativas da viagem: a grande viagem. Elegeram-se cinco pessoas que integrariam a missão. A idéia inicial era que os mesmos fossem chefiados pelo próprio homem que dera a idéia da viagem. Porém, ele mesmo se recusou, por motivos óbvios, alegando que não teria condições físicas de enfrentar a viagem.’
‘Posteriormente, cada uma das outras cinco pessoas, pelos mesmos motivos óbvios da recusa do eventual chefe da missão, desistiu da viagem. Diante do imbróglio, alguém teve a idéia, por fim, de enviar na missão três pessoas da freguesia que viviam presas numa jaula, por julgarem os demais que não regulariam bem da psiqué.’
- Estão querendo se livrar dos doidinhos! Estão querendo se livrar dos doidinhos! – ironizava a anciã.
- Deviam colocar a velha anciã para chefiar a missão! – resmungavam alguns.
‘No grande dia designado para o início da expedição, instruíram os três homens, explicaram-lhes o caminho a tomar e lhes deram alguns mantimentos. Estava inaugurada a primeira grande missão diplomática da freguesia!’
‘Realizadas as instruções e os discursos, deram ordem aos três homens para que iniciassem a viagem. Mas eles nem se mexeram. ’
- Vão! O caminho é por ali! Não ouviram?
‘Esqueceram os condenados de que aqueles homens talvez nem entendessem o dialeto falado na freguesia. Os três homens demonstravam-se indiferentes, nem ao menos tentando entender o que lhes falavam.’
- Vão! Corram!
- Eles não vão correr. Eles não vão sair daqui. É fato. São loucos! Loucos! Débeis! Não entendem o que a gente fala – resmungava a anciã, que observava a cena, a gargalhadas, ao fundo. – deviam ter escutado a velhinha aqui. Mas a velhinha aqui não serve para nada. Jamais nenhuma missão conseguirá estabelecer alguma conversa com aqueles que vivem no céu. É óbvio! Lá não vivem homens, nem bichos, nem plantas! Jamais nos escutarão desse modo. Lá deve viver algo maior, sublime e tão perfeito quanto a beleza das imagens que vemos quando olhamos para cima. Por acaso já viram homens passeando pelo céu? Não, não viram. E não viram por um único motivo: homens como nós, lá não existe. Existem o sol e a lua. Eles são redondos assim por serem como olhos que testemunham tudo o que fazemos. E quando lhes despertamos a ira, não nos jogam mais água, nem vento e ainda aumentam o calor, pois sabem que esses elementos são essenciais para as nossas vidas. Eles são nossos protetores mas, como os bons pais, repreendem os filhos quando fazem malcriações.
- Essa velha está louca! Louca! Deveríamos prendê-la na jaula junto com os demais – gritavam alguns.
- Então vamos lá, sabichões! Subam as montanhas e tragam a chuva! Eu, por outro lado, me comunicarei com eles de outro modo! Falarei o que eles querem escutar. Irei fazer uma prece aos nossos protetores, aos nossos bons pais! Tenho certeza de que eles nos escutarão dessa forma.
A velha anciã, levando um pote bem raso de água coberto por folhas de louro, dirigiu-se lentamente a um descampado que havia ao lado da freguesia. Todos a observavam calados, atônitos, vislumbrando a velha como a personificação da loucura.
Ela alcançou um ponto mais elevado e ergueu o pote de água aos céus e recitou lentamente:
- Nossos bons protetores, deuses da nossa origem, do nosso destino e da nossa sina, recebei tudo o que possuímos, esse humilde resto de água, e fazei com que esse cadinho se multiplique, mais e mais, para que possamos viver em paz os nossos desígnios. Perdoai as nossas falhas. Estamos aqui reconhecendo as nossas culpas!
‘A anciã deixou o pote de água no solo e voltou plácida à freguesia, onde os homens riam da sua atitude, chamando-a de louca.’
- E ai daquele que mexer na cuia de água que eu mesma levei! Eu o amaldiçoarei!
‘Embora zombassem e duvidassem da velha anciã, todas as pessoas, no silêncio das suas intimidades, desejavam, verdadeiramente, que aquele ‘teatro’ surtisse algum efeito. Nas horas subsequentes, muitos ficaram olhando para o céu, na esperança de que se fomasse alguma nuvem que anunciasse a chuva.’
[continua...]

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