sexta-feira, 8 de junho de 2007

6º Dia: Dos temposde cólera (III)

Dia após dia, fui melhorando da febre e da fraqueza, dormindo cada vez menos, levantando-me da cama uma vez por dia para comer e me assear. Vesúvia encontrava-se visivelmente abatida, mais magra, não obstante não escondesse um certo contentamento pelo meu restabelecimento.
- Trouxe um livro novo para você começar a ler nesta manhã. Dom Quixote! – surpreendeu-me ela um dia, sorrindo carinhosamente, como nunca havia feito comigo.
- Meus olhos ainda doem.
- Se não tiveres determinação, jamais se levantará desta cama.
A idéia de ler um livro me fizera relembrar, inevitavelmente, de Ceci. Mas era preciso que eu me acostumasse à idéia de que Ceci se fora, não sabia para onde. Aliás, não sabia nem se Ceci algum dia estivera comigo. Poderia ter sido fruto dos meus delírios.
- Vesu... E a seca?
Vesúvia olhou para o teto e deu um longo suspiro.
- Morreram muitos.
- Quantos?
- Muitos, não sei ao certo.
- A seca já passou?
- Choveu na semana passada. Foi dia de Santo Antônio.
- Tu emagreceste.
- Foi o desespero, a preocupação.
- Foi castigo, Vesu?
- Castigo? O quê?
- A minha doença.
Mais um longo suspiro.
- Os desígnios de Deus e dos homens são indecifráveis, Pingolim. – silenciou por alguns segundos, pensativa. – E agora deste para entender de Deus?
- Eu estive com Deus.
Visúvia gargalhou da mesma forma que o Deus coronel de engenho gargalhara no meu sonho. Porém, subitamente, ficou séria.
- Esteve com ele? E o que ele te disse?
- Venha até mim.
- E foste? – falou intrigada.
- Eu tentei, mas não consegui chegar até ele.
- E como era esse teu Deus?
- Era um homem.
- Um homem?
Ficamos em silêncio por alguns minutos, os dois cabisbaixos. Vesúvia se levantou lentamente, como se precisasse de muita força para andar. Fitei o Dom Quixote, admirei as gravuras da capa e comecei a ler o livro.
Passei o dia todo em leitura. Mais tarde veio Vesúvia com o mingau de aveia, sempre quente e salgado. Demorei mais que o tempo normal para comê-lo e logo caí na cama, pensativo, ansioso por relembrar todos os meus sonhos e delírios e analisá-los um por um. O sono não tinha pressa.
- Ei! Psiu!
Uma voz estranha, vinda da janela, surpreendeu-me. Denotava um tom nervoso, como se a pessoa tivesse pressa. O cansaço me impedia de ir atendê-la.
- Ei! Você mesmo! Venha até aqui!
A curiosidade me tomou por completo e venceu o meu cansaço. Caminhei até a janela e abri uma fresta da madeira. Era um menino, aparentemente da minha idade, um ar ansioso, muito suado e as roupas sujas de terra.
- Ei! Preciso de sua ajuda!
- Ajuda? Quem é você?
- Preciso de sua ajuda! Agora!
- Ajuda para quê?
- Estamos em guerra!
- Guerra? Que guerra? Não vejo guerra!
- Mas não é preciso que você veja as coisas para que elas existam. É uma guerra silenciosa! Todos sabem, mas ninguém comenta!
- Guerra silenciosa? E as balas, os canhões, os feridos?
- Ai! Você não entende nada mesmo desse mundo! Em que mundo você vive? É uma guerra silenciosa, abstrata! Não vê as pessoas morrendo por aí? Nós, homens, somos bichos, animais, temos instintos. Instintos de sobrevivência. Nessa terra de ningúem, não há recursos para todos. Por isso eles inventaram essa guerra. Estão matando todos que não lhes servem mais. Indiscriminadamente. Matam até com o olhar! O ohar é a arma mais poderosa que eles têm!
- Inventaram uma guerra? Quem são eles?
- O coronel de engenho, ajudado pelos seus capatazes.
- O coronel de engenho! Eu o conheço! Ele não é o...
- Exato! Ele chegou por aqui há muito tempo, com as suas idéias revolucionárias. Ele não era nada, e se tornou o Deus dos homens.
- Não sei... Não vivo no seu mundo! E acho que as pessoas estão morrendo pela seca.
- Seca! Seca! Seca é o que dizem. Seca é ilusão. As pessoas morrem pela guerra! Eu te garanto!
- Não consigo lhe entender.
- Há muito tempo atrás, numa seca muito mais braba que qualquer homem possa ter vivido, quando há meses não chovia neste sertão sem lei, caiu repentinamente uma tempestade tão forte, que a todos apavorou. E em meio aos relampejos, chegou um homem num cavalo branco, forasteiro, um lenço envolto na sua cabeça, da qual se podiam ver apenas os seus olhos, verdes como uma esmeralda. Tazia consigo um baú de madeira, trancafiado por um cadeado. ‘Vêem este baú? Vêem este baú?’, passou a gritar ele no meio da viela principal da freguesia, e não tardou muito para que as pessoas fossem às janelas, curiosas, não obstante a chuva. ‘Vêem este baú? Guardo coisas que jamais vocês viram! Coisas que vão mudar as suas vidas! Para sempre!’...
E o garoto foi descortinando a sua versão para a história do mundo dos homens, como se um cenário aparecesse do nosso lado e eu pudesse visualizar, com riqueza de detalhes, a sucessão dos fatos, a atuação das personagens, a troca dos cenários e até as possíveis reações da platéia (tristes ou alegres) para cada ato da tragédia.

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