segunda-feira, 18 de junho de 2007

10º Dia: Alegoria do Caldeirão Fervente (II)

‘Porém, nada aconteceu no primeiro dia subsequente, muito menos no segundo. Nenhum sinal de vento, de nuvem ou de chuva apareceu. Não obstante, a velha passava horas ao lado de sua oferenda, declamando frases em linguagem desconhecidas, cuja mensagem ninguém conseguia entender.’
- Está louca e caduca esta velha! Não dêem importância ao que ela faz! Deixem-na sozinha. Ela só quer chamar atenção.
‘Passou o terceiro dia e nenhuma novidade ocorreu.’
‘No quarto dia, uma criança que havia nascido há menos de duas semanas faleceu desnutrida. Sua mãe não produzira leite materno suficiente e os animais do pasto, há tempos, já não o produziam. ’
‘Era costume, naquela freguesia, colocar os corpos dos falecidos num pote enorme de cerâmica que eles mesmos produziam com argila que extraiam do solo. O pote era redondo, no formato de um globo, onde o corpo era disposto sentado, as pernas do falecido eram cruzadas e as mãos eram colocadas entrelaçadas sobre as suas pernas.’
‘O corpo era colocado nu dentro do pote. Também se retiravam dele todos os apetrechos materiais (fivelas, correntes, colares, sandálias). Quando o falecido era um homem, e tivera sido um bravo destemido dentre os demais, arrancavam-se todos os dentes de sua arcada, os quais eram utilizados para a confecção de um colar a ser usado por seu filho mais velho. Ter um colar de dentes do pai era a obtenção de um considerável status entre os condenados. ’
‘Após todo o ritual de costume, o pote era lacrado com uma tampa de cerâmica, e posteriormente levado a uma gruta que havia perto dos paredões montanhosos, onde era finalmente enterrado.’
‘Naquele dia, enquanto condenados mais próximos da criança falecida prepararam o seu corpo, chorosos, para colocá-lo no pote, escutaram-se gritos da velha anciã, radiante de felicidade, ao perceber que não havia mais água na cuia da sua oferenda:’
- Estão vendo! Escutaram-nos! Escutaram-nos! Não tardará e cairá chuva.
‘No entanto, aquela profusão de alegria em meio a um ar de profunda tristeza e melancolia foi bastante para ensejar a revolta dos moradores da freguesia, irados com o desrespeito da velha anciã, relativamente à dor pela morte do bebê.’
- Essa velha não respeita nem a dor pela morte do meu filho! – reclamava o pai da criança.
‘No entanto, a velha não parava de gritar. Correu por todas as ruelas da freguesia, anunciando a boa notícia, prevendo chuvas e mais chuvas, períodos de prosperidade, o fim das dores e da morte. A inquietação da anciã foi suficiente para que, flagrantemente raivoso, o pai da criança, como num rompante, se retirasse abruptamente do lugar onde estava, ao lado do corpo do filho, buscasse um machado nos fundos do casebre e se dirigisse ao encontro da velha, que, naquele momento, encontrava-se novamente no descampado, ao lado da oferenda.’
‘O homem caminhou arquejante ao encontro da velha, debaixo do sol a pino. Alguns moradores da freguesia vieram logo atrás dele, suplicando que se controlasse. A velha estava agachada ao lado da cuia vazia, de costas para o homem. Porém, como se pressentisse a sua chegada, tornou a virar abruptamente para ele antes que a alcançasse com o machado esticado em sua direção, em inegável tom de ameaça.’
‘A velha levantou o olhar vagarosamente e fitou os olhos vermelhos e suados do homem. Virou o olhar para o machado, sujo de terra e de barro, e tornou a olhar o chão, como se estivesse indiferente à ameaça.’
- Se estiveres aqui pelo incômodo que sentes pela morte do teu filho, te garanto que ele agora está em um lugar melhor.
- Que tu sabes desse mundo mais do que eu, hein? És tão humana quanto eu e se digna a ficar dizendo esses impropérios.
- Sou tão humana quanto tu és, mas isso não implica que eu veja o mundo da mesma forma que tu vês. Designo para as coisas sentidos completamente diferentes do que tu designas, e nem por isso sou melhor ou pior do que você.
- És uma louca!
- Qual o teu parâmetro para a designação da loucura? Basta alguém dizer uma coisa que não entendas ou que não concordes para atestar a sua loucura?
- Que eu não entenda? Estás a me chamar de burro?
- Não. Estou afirmando que és um ignorante.
‘As mãos do homem seguraram mais fortemente o machado.’
- Vais me matar?
- Já que és tão inteligente e superior, responda-me: o que acontece se eu te matar?
- Mata e verás!
- Estás me desafiando.
- Tu interpretas o que falo à tua maneira. Designas o sentido que pretenderes – e levantou-se – mas se queres saber do teu filho, olhe para o céu, durante a noite, e verás.
- Estás me fazendo de palhaço!
- Estou abrindo os teus olhos para possibilidades evidentes que não queres enxergar.
- Demoralizas-me na frente de todos!
- Apenas falo-te a minha verdade.
- A tua verdade?
- Adota-a se te for conveniente.
- Estás a me desafiar!
‘A velha anciã, visivelmente entediada, olhou para o céu e ergueu as mãos, pensando algo aparentemente indecifrável para os demais. O homem, irritado, jogou o machado na terra e a segurou pelos braços.’
- Teu filho estás vendo isso.
- Meu filho está morto e tu não me deixas sentir a dor de sua perda em paz.
- Foi apenas mais um que morreu. Morrerão ainda muitos. Mas a chuva... A chuva virá. Os deuses me escutaram.
- Cala-te! Não há deuses! Não há deuses! Estás louca! Não virá chuva nenhuma por esses dias. Não vês que não há sequer nenhuma nuvem no céu?
- Choverá hoje! Ainda hoje!
O homem passou a segurar fortemente a velha pelo pescoço.
- Não choverá e não há deuses! Estamos sozinho nessa terra!
- Choverá! Choverá! – a pressão das mãos do homem no seu pescoço começou a impedi-la de falar – Cho...
- Então, se há deuses, que eles impeçam que tu morras. Não és a mais inteligente de todas? Não és as maior crente dessas falsas verdades? Ele não iriam permitir tal perda!
- Choverá! Chov...
‘A velhinha, já fraquejando, repetiu por diversas vezes ainda a mesma frase. Era grande a platéia que testemunhava a cena, paralisada, atônita, silenciosa. Ninguém se atreveu a interferir, tão forte era a raiva do homem que agredia a velhinha, num acesso de ira.’
‘A feição da anciã, em nenhum momento, alterou-se. Mesmo fraquejando, sem ar, manteve o ar desafiante, absoluta em suas convicções. Em nenhum momento esmureceu. Seu rosto foi avermelhando-se e, no último suspiro, ainda reiterou:
- Choverá.
‘Caiu subitamente no chão, os olhos ainda abertos. O espanto foi geral. No entanto, antes que qualquer pessoa pudesse exclamar algo relativo ao evento prontamente consumado, ou ao menos antes que o homicida pudesse ter consciência e certeza da morte da velha, uma forte rajada de vento, vinda não se sabe de onde, supreendeu a todos, formando um redemoinho que se iniciou pequeno, mas foi crescendo, crescendo, envolvendo o barro da terra e absorvendo tudo o que encontrou pela frente. Atordoada, uma criança olhou para o céu e constatou, espantada:’
- Nuvens cinzas!
‘Todos olharam incrédulos para cima. O céu, antes azul e seco, transformara-se em uma abóboda de cinzas nuvens.’
‘Poucos minutos depois, ante o gélido e estático espanto de todos, começou a chover torrencialmente na freguesia.’
[continua...]

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